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Compassos da vida.


Iniciei a escrita deste texto a pensar no título de uma canção do extraordinário Sérgio Godinho: “Mudemos de assunto”.


Por mais que tente “mudar de assunto”, tenho ido parar ao mesmo: a minha perceção de que, neste momento social, as pessoas em idade ativa parecem estar divididas em dois compassos. Por um lado, trabalhadores que estão, de momento, desempregados, em espera da desejada “retoma” e a refazerem expetativas de forma a se ajustarem às oportunidades que surjam. Por outro lado, os trabalhadores no ativo que, independentemente do setor de atividade, estão a viver num ritmo frenético e avassalador.


Curiosamente, a média de idades dos voluntários da ATLAS é de 41 anos, a maioria estará a trabalhar. Há, certamente, episódios de vida comuns entre nós: mais um turno que é preciso fazer na fábrica num pico de produção; horas extra no escritório para concluir um relatório; prolongamento do horário para apoio logístico a tantos pedidos de clientes; videochamadas sem fim quando o trabalho invadiu a nossa casa, etc..
Trabalhar produtivamente é salutar e esperado nesta etapa do ciclo de vida (que se prolonga até cerca dos 60 anos). A par da produção e criatividade na atividade profissional surge a necessidade de criar e cuidar da família.


O meu ruminar de assunto tem a ver com isto mesmo: neste mundo materialista, dos números e das metas, a balança sai muitas vezes desequilibrada, com o aspeto profissional mais sorvedouro. A idade dos grandes desafios profissionais é também a dos grandes desafios da educação dos filhos e das fragilidades dos pais e a vida é, tantas vezes, gerida ao minuto, num correr de dias e voo de meses. Os filhos crescem, os pais envelhecem e precisamos ter tempo só para ser, só para estar.

“(…) precisamos ter tempo só para ser, só para estar.”

“Mas isto é um canto
E não um lamento
Já disse o que sinto
Agora façamos o ponto
E mudemos de assunto
(…)”


Conseguindo satisfação neste equilíbrio entre trabalho e família, o sentido do cuidar pode até ir além do contexto familiar e abarcar a comunidade onde se está inserido, a preocupação com os outros, o cuidar solidário (que também é comum entre nós, voluntários).
Neste mundo incerto, complexo, ambíguo, imprevisível, precisamos de descobrir quais as ligações (à natureza, à família, aos amigos, ao trabalho, à comunidade, etc.) que nos dão segurança, confiança e que têm significado para nós. Essas ligações são as que moderam os desequilíbrios e restituem harmonia. É um exercício de reflexão, cuja necessidade tantas vezes sentimos, mas que os grandes desafios, que acima referi, vão adiando… Então, desejo-nos tempo para que “façamos o ponto” da vida, de vez em quando, e para que possamos vivenciar essas ligações.


Autora
Sofia Carruço
Psicóloga e Voluntária na Atlas – People Like Us, em Leiria

Comentários(2)

  1. REPLY
    Maria Santos diz

    Parabéns, por esta tão oportuna reflexão. É verdade…precisamos de tempo, sim…”temos pressa de mais”. Às vezes tenho dúvida, se nesse tal mundo de “metas e números ” somos apenas vítimas, ou co-responsáveis, uma vez que permitimos isso, e até damos luta.!!! É isso que nos adoece, e para ter capacidade de usar o tempo corretamente, é preciso estar saudável e feliz. De outra forma não estamos a viver, não estamos a usar o tempo, mas sim a sermos usados … pelo tempo. …”Mudemos de assunto”, e vamos guardar tempo para passear por este nosso país que foi criado para ser visto a pé, e que se deixa pisar com facilidade, como diz Afonso R Cabral. Conetar-nos com a natureza, sentir as nossas raízes , alimentar o nosso bem estar. Ter tempo só para ser, só para estar.

  2. REPLY
    Augusto Carruço diz

    Gostei do texto. Parabéns.
    É um tema que me sensibiliza. Deixo uma opinião pessoal.
    A família é como a nascente de uma fonte:
    – A água nasce, sacia, refresca e permanece disponível.
    Os amigos são a família escolhida por analogia e é como um rio que corre junto de nós:
    – A água que corre vem ao nosso encontro, renova, refresca e segue o seu caminho
    A solidariedade é como uma gota de água que desce de uma nuvem:
    – Identifica quem tem sede, quem mais precisa de refrescar e de quem precisa recolher gotas de água.
    A família, os amigos e a solidariedade têm as suas diferenças, mas todas podem contribuir para a liberdade de pensar, agir e sonhar, sem pressões e sem medo, como se estivessem junto das águas calmas de um lago.

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