“Vivemos todos, neste mundo, a bordo de um navio saído de um porto que desconhecemos para um porto que ignoramos; devemos ter uns para os outros, uma amabilidade de viagem”
Fernando Pessoa in Livro do Desassossego
Ao longo do processo de envelhecimento é comum os nossos mais velhos depararem-se com algumas dificuldades. Tarefas que eram realizadas com facilidade passam a ser mais complicadas, por exemplo a visão e mobilidade podem ser afetadas, aumentando o risco de queda, e frequentemente surgem problemas de saúde.
Envelhecer pode trazer alguns desafios e para ultrapassá-los ter uma rede de proximidade de familiares, amigos, vizinhos, voluntários e outros heróis (des)conhecidos faz a diferença!
Cuidar de uma pessoa é uma tarefa nobre e exigente, que muitas vezes desafia a conciliação pessoal e que traz também desafios aos próprios cuidadores.
Por mais avanços tecnológicos que existam nada substitui a nossa “presença” mas o uso das tecnologias pode efetivamente ajudar, mesmo que à distância, sendo certo que um cuidador nunca pode ser substituído por máquinas/tecnologia.
Uma das grandes preocupações dos cuidadores são os vários períodos que os nossos mais velhos estão sozinhos. Frequentemente questionam-se se em caso de SOS ou de queda será possível auxiliá-los ou se conseguem voltar a casa quando já existem episódios de deambulação. Uma solução que permita a localização GPS e a comunicação permite por exemplo comunicar com o sénior sempre que necessário, manter o sénior “sempre acompanhado” e dar mais confiança, tranquilidade e qualidade de vida a ambos.
O nosso envelhecimento não depende somente da nossa herança genética, mas também do nosso nível de escolaridade, do(s) local(ais) onde vivemos e ainda do “género que nos coube em sorte”.
Ser homem ou ser mulher significa ter papéis diferentes na sociedade, ser educado de forma desigual, ter oportunidades diferentes na vida. E significa também que o processo de envelhecimento no masculino e no feminino são vividos de formas diferentes.
Para identificarmos as disparidades entres homens e mulheres, de modo a nos abrir caminho a uma maior compreensão e consciencialização acerca da igualdade de género, a ATLAS promoveu o “Encontro ao Serão” dedicado ao tema “Questões de Género e o Envelhecimento”, no passado dia 10 de novembro, via ZOOM.
Foi oradora convidada a Professora Doutora Cristina Vieira, licenciada em Psicologia pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra e docente desta Faculdade desde 1992, sendo ainda Vice-Presidente da Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres.
O apelo geral deixado pela preletora aos voluntários e amigos do ATLAS que participaram neste Encontro ao Serão foi o de que é necessário exercermos o nosso papel enquanto cidadãs e cidadãos, sendo neste sentido que foi elaborada a Estratégia Nacional da Educação para a Cidadania, tendo a Professora Cristina Vieira feito parte do grupo de trabalho.
“Educar os jovens para que possam ser livres nas escolhas que façam”
assim referido pela preletora, não é um desiderato menor da formação das crianças e jovens. Se no futuro queremos adultos e adultas com uma conduta cívica que privilegie a igualdade nas relações interpessoais, a integração da diferença, o respeito pelo outro, é na sala de aula que tem de ser ensinado isto. Neste sentido, apraz ao ATLAS regozijar-se com o seu papel que tem vindo a desenvolver com o MEXE-TE.
Não há nenhuma sociedade no mundo em que a igualdade de género seja completamente conseguida. E, por isso, necessitamos de continuar mobilizados para promover a igualdade de género, mais a mais, num mundo que envelhece. Isto mesmo é referido na Carta de Género e Envelhecimento adotada em 2014, uma iniciativa do Centro Internacional de Longevidade Brasil. Também, a nível europeu, o Instituto Europeu da Igualdade de Género trabalha para que a igualdade de tratamento entre homens e mulheres seja uma realidade do nosso quotidiano.
“Quando a igualdade de géneros é realmente aceite, as aptidões, experiências e recursos de mulheres e homens de todas as idades serão reconhecidos como um património intrínseco de uma sociedade plenamente coesa, enriquecedora, produtiva e sustentável”.
Urge promover a igualdade de género num mundo que envelhece.
Bibliografia:
Carta de Género e Envelhecimento do Centro Internacional de Longevidade Brasil
Site do Instituto Europeu para a Igualdade de Género (EIGE)
Sou, desde há 7 anos, voluntária numa organização de solidariedade denominada Atlas. Há 4 anos fui convidada a coordenar um dos projectos desta associação – o Velhos Amigos. É nesta qualidade que passo a enumerar sucintamente as linhas de atuação desta ONG na cidade onde vivo.
A ATLAS é uma organização não-governamental para o desenvolvimento, que tem como missão intervir em sectores-chave da sociedade, de modo a criar, junto das comunidades locais, alavancas de Desenvolvimento Humano Integrado e Sustentável.
Na Marinha Grande, a Atlas desenvolve, desde Julho de 2016, um projeto de Intervenção Cívica e de Desenvolvimento Local – o Projeto Velhos Amigos, que apoia idosos nas suas casas, em situação de carência e/ou isolamento. Um projeto de Voluntariado Profissional que leva refeições quentes, afetos e companhia a idosos da cidade, todos os fins-de-semana do ano.
Na Marinha Grande, são cerca de 100 voluntários/os comprometidos com este projecto, apoiando 22 beneficiários/as e envolvendo cerca de 23 restaurantes solidários.
Na Marinha Grande, temos marcado presença nas Festas da Cidade assim como nas tendinhas de Natal, conseguindo dessa forma dar visibilidade à Associação, permitindo aos voluntários apresentar à população o Projecto Velhos Amigos e trazer novos amigos para a ATLAS.
Além do projeto de Intervenção Cívica e Desenvolvimento Local, a ATLAS desenvolve também nesta cidade, o Projeto Escolas Solidárias que presta apoio a crianças e famílias carenciadas através da doação de cabazes constituídos por produtos alimentares e de higiene. Também o número de cabazes tem vindo a aumentar significativamente.
Neste tempo de pandemia, a Atlas, como tantas outras associações solidárias, tem-se desdobrado em apoios às famílias que atravessam provavelmente o tempo mais difícil das suas vidas.
Durante o confinamento, numa conjugação de esforços, através da ajuda solicitada à Câmara Municipal da Marinha Grande, aos lares da Santa Casa da Misericórdia, Vergieiras e Outeirinhos à Associação Social Desportiva e Cultural de Casal Galego, a que se juntaram seis restaurantes solidários da nossa cidade, conseguimos assegurar o fornecimento das refeições aos nossos beneficiários.
Atualmente, na grave situação que o país continua a atravessar, não baixamos os braços e, assim, não privamos os nossos utentes desta nossa tão preciosa ajuda.
A solidariedade e o espírito de entreajuda foram, deste modo, postos ao serviço da comunidade.
A cada dia damos o nosso melhor, procurando honrar o princípio estruturante da Atlas: colocar a Pessoa no centro das políticas, acções e motivações.
Dora Birrento
Voluntária Coordenadora do Projeto Velhos Amigos na Marinha Grande
Intervir com a pessoa idosa exige pensar o Envelhecimento enquanto processo de declínio progressivo, complexo e multifatorial, que se traduz, essencialmente, em alterações biológicas, psicológicas e sociais.
Exige ainda considerar as alterações decorrentes do processo de Envelhecimento Cognitivo, muitas vezes subvalorizadas e que, na verdade, impactam significativamente a vida de muitos idosos.
O Envelhecimento Cognitivo traduz-se na diminuição e lentificação dos processos cognitivos, ou seja, qualquer procedimento utilizado para processar informações recebidas através dos sentidos, atribuir-lhes significado e transformá-las em conhecimento, tomando decisões em sua função. Estas alterações nos processos cognitivos podem comprometer o desempenho do idoso nas atividades da vida diária (tais como comer, vestir ou tomar banho) e condicionar a sua participação social.
A Estimulação Cognitiva assume-se como estratégia de manutenção e melhoria das capacidades cognitivas, podendo a sua implementação beneficiar o processo de Envelhecimento, contribuindo para a melhoria da qualidade de vida, com efeitos positivos na cognição, autonomia e redução da sintomatologia depressiva (Loewenstein, Acevedo & Czaja, 2004; Rue, 2010; Spector, Orrell, & Woods, 2010).
Os efeitos da Estimulação Cognitiva relacionam-se com o conceito de neuroplasticidade, capacidade que o cérebro tem de, perante alterações, criar novas ligações e aumentar os circuitos neuronais, enquanto resposta adaptativa, através da exposição a estímulos constantes e adequados (Bastos, Oliveira & Silva, 2017).
A orientação, atenção, linguagem, memória, funções executivas, cálculo, praxias (capacidade de realizar movimentos eficazes e coordenados) e gnosias (reconhecimento de estímulos recebidos através dos sentidos) são algumas das funções que podem ser estimuladas, através de atividades de papel e caneta, música, jogos, aplicações móveis, realidade virtual, entre outras.
É fundamental considerar a singularidade de cada pessoa, pelo que conhecer a história de vida e os interesses do idoso são aspetos relevantes ao programar uma sessão de Estimulação Cognitiva (Nadai, Pinheiro & Melo, 2018)
O ambiente em que a sessão decorre deverá ser pensado e organizado, oferecendo temperatura, iluminação e quantidade de estímulos adequada. O grau de dificuldade das atividades apresentadas deverá ser desafiante e estimulante, graduado sempre que necessário.
Seja em contexto de voluntariado ou de intervenção cognitiva, o essencial é estar verdadeiramente presente e envolvido, lembrando as palavras da Madre Teresa de Calcutá “se não pudermos fazer grandes coisas, façamo-las pequenas, com muito amor”.
Referências Bibliográficas
Bastos, J., Oliveira, M., Silva, D., & Silva, J. (2017). Relação ambiente terapêutico e neuroplasticidade: uma revisão de literatura. Revista Interdisciplinar Ciências e Saúde, 4(1). Retrieved from https://revistas.ufpi.br/index.php/rics/article/view/4337
Loewenstein, D. A., Acevedo, A., Czaja, S. J., & Duara, R. (2004). Cognitive Rehabilitation of Mildly Impaired Alzheimer Disease Patients on Cholinesterase Inhibitors. The American Journal of Geriatric Psychiatry, 12(4), 395–402. https://doi.org/10.1097/00019442-200407000-00007
Nadai, M., Pinheiro, L., & Melo, D. (2018). Envelhecimento bem-sucedido e autoeficácia: Uma revisão da literatura. Revista Kairós : Gerontologia, 21(3), 403–422. https://doi.org/10.23925/2176-901X.2018v21i3p403-422
Rue, A. (2010). Healthy brain aging: role of cognitive reserve, cognitive stimulation, and cognitive exercises. Clinics in Geriatric Medicine, 26(1), 99–111 https://doi.org/10.1016/j.cger.2009.11.003 Spector, A., Orrell, M., & Woods, B. (2010).
Cognitive Stimulation Therapy (CST): effects on different areas of cognitive function for people with dementia. International Journal of Geriatric Psychiatry, 25(12), 1253–1258. https://doi.org/10.1002/gps.2464
Joana Sousa
Licenciada em Terapia Ocupacional, com formação complementar em Intervenção com a Pessoa Idosa e Cuidadores e em Estimulação Multisensorial na Demência.
O processo de envelhecimento traz consigo um conjunto de limitações de ordem física e mental como a diminuição da força muscular, da acuidade visual e auditiva, da atenção e memória, etc., com impacto negativo nas actividades da vida diária e nos contactos e relações sociais. É, no entanto, possível aos voluntários assumir estratégias de comunicação que facilitam os contactos e relações sociais com os nossos beneficiários. Neste artigo procuraremos apresentar algumas dessas estratégias.
No passado dia 15 de setembro, realizou-se nas instalações da Atlas, em Leiria, um “Encontro ao Serão” dedicado ao tema “Comunicação com o Idoso, ferramentas para uma comunicação eficaz”.
Foi oradora convidada, a Dra. Joana Santos, Terapeuta da Fala no Município de Leiria com Mestrado em Terapia da Fala, Perturbações da Comunicação e Deglutição no Adulto. A sessão, em formato presencial e em Zoom, contou com a participação de voluntários e associados.
Da apresentação da Dra. Joana, muito esclarecedora e útil para voluntários e beneficiários, apresentamos, de forma muita reduzida alguns pontos:
Algumas das regras gerais que facilitam a comunicação com o idoso:
Ter especial atenção às necessidades e dificuldades específicas do idoso, resultantes de eventuais doenças ou limitações motivadas pela idade ou outras circunstâncias;
Falar de forma calma, gentil, clara e pausada;
Adequar o volume da voz e alternar a entoação;
Adequar a linguagem e certificar-se de que está a ser compreendido;
Usar frases simples, curtas e sem rodeios;
Esperar que o interlocutor termine de falar, não o interrompendo ou completando as frases do idoso;
Repetir ou reformular a frase se não obtiver resposta;
Escutar ativamente;
Eliminar o ruído de fundo, conversando, se possível, num local calmo;
Pedir que respire bem antes de falar;
Transmitir segurança e calma.
Comunicação é muito mais do que apenas palavras 55% linguagem corporal, não verbal 38% tom de voz 7% palavras utilizadas
A chave de qualquer relação ou comunicação é a empatia, designadamente a capacidade de compreender, estar atento e ser sensível às emoções, pensamentos e experiências do outro. A comunicação com empatia envolve parar, escutar e responder, e a consciência de que a comunicação é sempre bidirecional.
Após a apresentação da Dra. Joana seguiu-se um debate muito participado entre os presentes.
Obrigado a todos os que estiveram connosco! Ficou-nos uma imensa vontade de voltarmos a novos “Encontros ao Serão” que serão certamente passos importantes na aprendizagem que queremos contínua no apoio aos nossos beneficiários.
Nota: A Dra. Joana fez uma exposição muito rica e detalhada. O resumo e edição dessa exposição foi da responsabilidade do redator deste artigo, Rui Bingre.
Autor: Rui Sérgio Bingre
Voluntário do Projeto Velhos Amigos e Voluntário Coordenador da nossa Newsletter. O Rui gosta de conhecer e partilhar histórias, vivências e conhecimentos. Contamos com ele, todos os meses, para nos informar sobre assuntos de interesse para a comunidade ATLAS.
Ao longo de vários anos, a Walt Disney habituou espetadores e espetadoras a filmes protagonizados por princesas, heróis e animais fabulásticos, nos quais personagens fantásticas e irreais ganham vida e tornam-se referências para miúdos e graúdos. São narrativas consensuais com heróis padronizados capazes de gerar empatia a qualquer um, independentemente do género ou faixa etária. A Disney consolidou a fórmula do sucesso ao longo de décadas até, em 2009, numa coprodução com a Pixar, se propor a romper os cânones estereotipados dos Clássicos anteriores, através da adoção de um protagonista com características bem diferentes das que estávamos habituados a ver. O filme chamar-se-ia Up-Altamente! e, “apresentava, pela primeira vez, um idoso de 78 anos como herói principal” (Marques, 2011, p.13).
Os heróis têm idade? …
As fórmulas norteadoras dos filmes com assinatura Disney e que, durante anos, foram garantia da sua consensualidade, pareciam desaparecer em Up-Altamente!: os investidores, analistas e principais fabricantes de merchandising desacreditaram no eventual sucesso do filme fundamentados numa descrença na personagem principal que tomaria as rédeas do enredo, Carl Frederiksen. Segundo os interesses e prospectivas dos agentes suprarreferidos, conceber uma criança a brincar com um idoso gera estranheza.
… parece que sim.
Facto é que o filme foi muitíssimo bem recebido pela Crítica, não se tornou o flop que muitos previam e, em determinados países, levou ao cinema gerações mais avançadas, quando comparadas com as que habitualmente são espectadoras dos filmes da Disney. Diferente foi, efectivamente, a relação dos consumidores com o merchandising, cujos níveis de venda foram bastante inferiores, quando comparados com personagens de outros filmes.
Estrutura residencial para idosos versus A minha casa
Up-Altamente! é uma narrativa ímpar na trajectória cinematográfica da Disney. O convite, deste construto de animação, é para que conheçamos Carl Frederiksen: um homem que aos 78 anos, confrontado com a viuvez providenciada pela perda da mulher, que toda a vida o acompanhara nos sonhos, se vê na decisão dicotómica de determinar o seu futuro: se, por um lado, é convidado por uma sociedade estereotipada na sua forma de pensar, a separar-se da habitação em que sempre vivera para integrar uma estrutura residencial para idosos é, por outro, instintivamente impulsionado a lutar pela concretização do sonho que lhe estava, desde sempre, afeto. Troca a ida para um Lar pela concretização de um sonho e mostra, aos descrentes nas suas potencialidades, que nunca é tarde para prosseguir com aquilo para que sempre se lutara.
Viver sem sonhos.
O filme, por si só, é um convite a que seja pensada e reflectida a forma como socialmente estamos a interpretar as pessoas de idade avançada. Retirando-lhes o hélio (com que Carl encheu os balões que elevaram a sua casa) que as impede de se autorrealizarem e lhes retira as perspectivas de futuro, fazendo aquilo que querem e gostam, estamos simultaneamente a desperdiçar potencialidades e a sentencia-las a um futuro de infelicidade e passividade, pouco contributivas para a vida social.
Roubar sonhos dá direito prisão?
Atravessamos, socialmente, uma época de contrassensos sempre que desejamos idosos protagonistas de uma vida autónoma e, paralelamente, os desacreditamos das suas potencialidades, confinando as suas vidas a meros trajectos vivenciais aos quais foram roubados objectivos e motivações. No seio das sociedades contemporâneas difundem-se “visões mais restritas do envelhecimento que persistem em evitar pensar nas potencialidades de pessoas como Carl Frederiksen, que aos 78 anos demonstra uma vitalidade capaz de percorrer o mundo” (Marques, 2011, p.14).
Referências
Marques, Sibila. (2011). Discriminação da Terceira Idade. Relógio D’Água Editores: Fundação Francisco Manuel dos Santos. Direção Geral da Saúde. (2017). Estratégia Nacional para o Envelhecimento Ativo e Saudável 2017-2025: Proposta do Grupo de Trabalho Interministerial (Despacho nº 12427/2016).
Autora: Rita Pratas Figueiredo
Formada Serviço Social, Rita Pratas está atualmente na ATLAS – People Like Us a realizar Estágio Profissional.
O Transtorno de Acumulação Compulsiva é uma psicopatologia caracterizada pela aquisição compulsiva de objetos desnecessários, dificuldade em desfazer-se dessas posses e desorganização do espaço.
Do normal ao patológico
Aquiles da Mota Lima, nascido em tomar, começou a colecionar caixas de fósforos em 1953. Começou por trazer uma caixa de fósforos de cada país que visitava, para que mais tarde conseguisse recordar o país, os cheiros, os momentos e as pessoas que com ele se cruzaram. Ao longo da sua vida a coleção foi aumentando e os seus familiares e amigos traziam-lhe já caixas de fósforos diferentes para que pudesse juntar à sua coleção. Hoje, é a sua filha que cuida do “Museu dos fósforos” que conta com cerca de 40 mil caixas de fósforo de 127 diferentes países. Aquiles da Mota Lima, um colecionador entre tantos fez uma procura ativa de um objeto em específico, organizava as caixas por países e acondicionava-as para que não se degradassem. Olhando para o seu percurso percebemos que existe um método no meio da sua loucura. Uma loucura saudável.
O comportamento de colecionar e acumular objetos está presente em todas as populações, sendo que varia entre espectros: de normal a patológico.
Em pessoas com o Transtorno de Acumulação Compulsiva percebemos que existe um processo de degradação progressiva, onde não há método nenhum e o comportamento de acumulação afeta a qualidade de vida da pessoa e da comunidade. A acumulação pode resultar da compra compulsiva de objetos diversificados, da compra em grandes quantidades (desproporcionais ao consumo), do roubo de peças, do amontoar de lixo em casa ou recolha de objetos do lixo, descartados por outros. Independentemente da origem, os objetos acumulados congestionam e causam desorganização nas áreas funcionais e de convívio, como a cozinha, quarto e sala de estar, interferindo com o uso dessas áreas. As atividades básicas diárias, como transitar pela casa, cozinhar, limpar, fazer a higiene pessoal e até mesmo dormir ficam afetadas verificando-se a longo prazo uma saúde física deficiente e intensa utilização dos serviços sociais. Em casos graves, a acumulação pode colocar os indivíduos em risco de incêndio, de cair, bem como submetê-los a condições sanitárias deficientes. O conflito com os vizinhos e as autoridades locais é comum, sendo que muitos dos indivíduos com transtorno de acumulação grave enfrentam procedimentos e/ou intenções de despejo. Nem sempre as memórias e a ligação emocional aos objetivos justificam a dificuldade em desfazerem-se dos mesmos. Em muitos casos a angústia, ansiedade e tristeza está relacionada com a dificuldade em tomar uma decisão, com medo de deitar para o lixo algo que precisem no futuro e não tenham possibilidade de comprar.
Qual a origem do Transtorno de Acumulação Compulsiva?
Estudos em gêmeos indicam que aproximadamente 50% da variabilidade no comportamento de acumulação deve-se a fatores genéticos aditivos. Adicionalmente, 50% dos indivíduos refere que têm um familiar com o mesmo comportamento. Para além dos fatores genéticos os acontecimentos ao longo da vida parecem ter também um papel preponderante, sendo que os indivíduos com transtorno de acumulação com frequência relatam retrospetivamente eventos stressantes e com traumas interpessoais, como violência doméstica e perda acidental ou trágica de ente querido. A experiência de um trauma interpessoal pode resultar em apego emocional forte a pertences que passem sensação de segurança aos indivíduos.
Aproximadamente 75% dos indivíduos com transtorno de acumulação têm um transtorno do humor ou de ansiedade comórbido. As condições comórbidas mais comuns são transtorno depressivo maior (até 50% dos casos), transtorno de ansiedade social (fobia social) e transtorno de ansiedade generalizada. A doença funciona como uma mórbida auto-compensação de algo que aflige o indivíduo.
O Transtorno de Acumulação Compulsiva trata-se de um transtorno emocional com fortíssima repercussão comportamental.
A gravidade da acumulação aumenta a cada década da vida.
Os sintomas de acumulação parecem ser quase três vezes mais prevalentes em adultos mais velhos (55 a 94 anos) comparados com adultos mais jovens (33 a 44 anos). É uma doença que vai evoluindo com o tempo, intensificando quando:
Existe uma quebra e rejeição dos padrões sociais, observados no descuido pessoal e habitacional;
Se vive sozinho ou em Isolamento Social, sendo que em muitos casos é o próprio doente que afasta a possibilidade de contacto social, por vergonha;
O reduzido insight para o problema e o aparecimento de outros problemas de saúde que incapacitam o idoso de arrumar os objetos acumulados.
Como podemos ajudar?
O diagnóstico e tratamento de um transtorno de acumulação compulsiva é competência de profissionais qualificados. Atendendo à complexidade do transtorno, a intervenção deve ser planeada em conjunto com o médico de família, os assistentes sociais, o Ministério Público, a proteção civil e a rede de suporte.
Na ATLAS, no âmbito do Projeto Velhos Amigos (projeto que apoia idosos em situação de Isolamento e Carência Económica), temo-nos deparado com várias situações de acumulação excessiva. A carência económica, a falta de respostas sociais e gratuitas para estes idosos afasta muitas vezes a possibilidade de uma intervenção adequada, pelo que importa refletir como é que, enquanto cidadão preocupado ou vizinho, podemos ajudar.
Uma vez que se trata de um problema com raiz profundamente emocional, é importante estarmos disponíveis para ouvir, compreender e colocarmo-nos no lugar do outro. Por muito invulgar, desadequado ou até perigoso que julguemos o comportamento de acumulação, este cumpre uma função para a pessoa, a de lhe transmitir segurança ou a de a ajudar a lidar com pensamentos e emoções negativas. Todos temos as nossas estratégias para lidar com a dor, umas mais apropriadas do que outras. Particularmente para um idoso, criar novas ferramentas torna-se difícil e a mudança é muito mais assustadora. A empatia, a sensibilidade e a atitude livre de julgamentos são elementos essenciais para ajudarmos o outro, numa perspetiva de abertura e de respeito pelas suas dificuldades. Dediquemos, então, a nossa energia a preencher as vidas das pessoas com momentos positivos, carregados de afeto, proximidade e atenção. Talvez assim não sobre espaço vazio para esconder com bens materiais.
Referências
American Psychiatris Association (2013). Diagnostic and Statistícal Manual of Mental Disorders, Fifth Edition. Washington: APA. Vidal, C. E. L. & Wanderley, R. G. (2012). Transtorno Obsessivo-Compulsivo. In C. N. Abreu & M. Roso (Cols.). Psicoterapias Cognitiva e Construtivista Novas Fronteiras da Prática Clínica (pp. 139-148). Porto Alegre: Artmed.
Autora: Ana Rita Vieira
Formada em Psicologia das Organizações e do Trabalho, com formação em Psicologia Comunitária e Igualdade de Género.
Velhos Amigos é um projeto que, desde 2008, pretende mitigar o Isolamento Social dos Idosos. Atuamos em Coimbra, Pombal, Leiria e Marinha Grande. Criamos redes de voluntariado, equipas fixas, que acompanham idosos em situação de isolamento social, solidão e carência económica. Todos os sábados visitamos os nossos idosos, percebemos como estão, ajudamos no que podemos, procuramos respostas nos nossos parceiros para as necessidades encontradas, levamos refeições quentes, mimamos, sorrimos juntos e partilhamos muitos abraços.
O aparecimento e evolução epidemiológica do Coronavírus (COVID-19) no território nacional e o risco acrescido que este representa para a população idosa, exigiu que repensássemos rapidamente os nossos sábados de forma a reduzir a propagação do vírus, nomeadamente junto de quem lhe é mais vulnerável.
Avaliamos caso a caso, tentando dar a resposta mais consciente e humana possível, que só é possível concretizar com a ajuda dos voluntários. Num momento difícil, dominado pelo medo e a incerteza, o sentido de missão ganha outro significado e torna-se sinónimo de coragem.
Continuamos a poder contar com o apoio dos restaurantes solidários, uns em regime de take-away e outros que, mesmo fechados para o público, continuam a fazer refeições para os idosos. Vários voluntários colocaram também “mãos à obra” e estão eles mesmos a fazer as refeições ou a comprá-las para oferecer. Estamos todos atentos às normas e cuidados de higiene, de forma a garantir o máximo de segurança para os beneficiários.
Quanto às nossas visitas, por força das circunstâncias são agora mais breves. Ligamos antes a perguntar se precisam de alguma coisa do exterior, entregamos as refeições à porta e prometemos ligar durante a semana. Reforçamos os telefonemas, não é a mesma coisa, dizem eles, mas explicamos que temos todos de nos proteger uns aos outros. Muitos dizem-nos que já estão habituados a viver sozinhos, a não receber visitas. A situação de isolamento agrava-se agora com sentimentos de medo, de ansiedade e de frustração. Muitos não percebem o que se está a passar, não entendem como se propaga o vírus. Alertamos para os cuidados necessários, para os sintomas a que devem estar atentos, tentamos acalmar, informar, mostramos que estamos com eles, à distância de uma chamada.
O desafio é enorme, mas tem mais sentido que nunca.
Na luta contra uma pandemia que nos isola, os Velhos Amigos precisam de todos nós. Porque se estivermos juntos, ninguém estará só.
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