De noite, o zum-zum da máquina de costura, interrompia as vozes dos desenhos animados. A mãe costurava os nossos vestidos, os meus e os da minha irmã, que fazia com os moldes da Burda, para levarmos no dia das fotografias da escola. Foi assim até aos dez anos, altura em que eu já sabia dar alguns pontinhos.
Com o tempo, aprendi que esse tipo de castigo, a obrigação das meninas saberem fazer estas actividades (nasci em 1969, filha de pais portugueses emigrados no Canadá), dava jeito.
Com estes saberes, vestidos para as bonecas, depois, saias e blusas para mim, aos 15, já residente em Portugal, fazia blusas para todas as minhas amigas.
A moda ditava que as roupas feitas em casa eram ridículas, por isso, segui contra a maré.
Na escola, aprendi a lidar com contas correntes e balanços, mas nos intervalos, desenhava croquis de vestidos de noite. E vestia roupas estranhas, que fazia com a ajuda da mãe, e com a minha persistência. Ainda assim, escolhi os números. Eram mais seguros.
Trabalhei vinte e quatro anos numa empresa, com a escolha que fizera, números. No início, chegava a casa, tricotava camisolas enquanto via televisão. O pai, que vinha de uma família de pescadores da Foz do Arelho, e que desde muito cedo tecia redes com laçadas, um dia olhou para mim e disse:
– “sei fazer isso!”.
Achei graça. Ele pegou nas agulhas e tricotou duas carreiras, na maior perfeição.
Achamos que ultrapassamos os nossos pais, que as coisas que sabem são antigas tradições. Engane-se quem assim pensa. São saberes que passam de geração em geração. Achava bonito, gostava de saber fazer estas coisas, mas, até para eles, a mãe e o pai, trabalhar num escritório é que era trabalho para uma senhora.
E um dia, já o pai tinha partido, e eu já era mãe de filho e filha, fui despedida do meu emprego de senhora. De todos os pedidos de emprego que fiz, mais de mil, nem uma resposta. Vinte e quatro anos de experiência não serviam de nada.
Então, aconteceu um acidente. Num dia de vento perdi o chapéu da minha bebé, e, zangada, decidi fazer-lhe um. Depois, fiz outro para mim, coloquei uma fotografia no Facebook e vendi-o.
Isto foi há dez anos. Nestes dez anos, foi o conhecimento que a minha mãe me transmitiu que me transformou na que sempre fui. Uma mulher que constrói o futuro com as mãos. Que ouve o zum-zum da máquina de costura todo o dia. Faz ainda os seus próprios vestidos, e os vestidos de muitas outras pessoas. Não vestidos e roupas que se vendem por tuta e meia. Vestidos que são usados para manter pela vida a fora. Que contém as histórias da minha infância e são feitos com dias longos de alguém que acredita no que os pais ensinam, seja o que for, fará para sempre parte de quem és.
Construí o meu futuro de tradições do passado, e, no presente, muitas são as vezes que me sento com a minha filha de dez anos no sofá a ver televisão e a descansar, mas ouço sempre um zum-zum de uma máquina de costura. Vem da minha própria máquina, a que eu comprei às prestações mal recebi o meu primeiro salário. Não sou só eu que fiquei com esta música no ouvido, mas também o meu filho, de dezassete anos, que a usa para os seus projectos de arte.
Hoje quase com 53 anos sei, que tal como uma rede, somos feitos de todas estas ligações que nos deixaram. As nossas raízes. Os saberes da humanidade. De geração em geração. Aprendemos coisas novas, que construímos sobre o que alguém fez antes de nós.
E, que não há futuro sem ter havido antes, uma laçada, que alguém deu primeiro.
Autora
Zélia Évora
Criativa
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