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Uma leitura, uma partilha de opinião.


“Uma leitura, uma partilha de opinião” é um espaço de partilha entre voluntários e voluntárias da ATLAS. Aqui descobrimos o que andam a ler, quais as suas reflexões e sentimentos. Estão todos e todas convidadas a deixar comentários ao artigo no fim desta página!


Almoço de sábado e “Almoço de Domingo”

Comentário de
Celina da Costa Gameiro
Voluntária do Projeto Velhos Amigos, residente em S.Simão de Litém – Pombal
Licenciada em Línguas e Literaturas modernas, variante de estudos franceses e ingleses, pela FLUC

Acabei recentemente de ler o novo livro do autor José Luís Peixoto intitulado “Almoço de Domingo”. Quando o comprei, sabia que se tratava de uma biografia, mais particularmente de Rui Nabeiro, o grande empresário do café Delta, mas estava longe de imaginar o tipo de viagem que esta biografia me ia permitir fazer. É uma viagem constante através de tempos e de espaços, tão distintos e sempre unidos pela voz do narrador.

Começa pelo presente, que entretanto já passou. Começa por um acordar, não só o acordar do sono, mas também o acordar da consciência, de onde está e de quem é e qual é a sua situação. “Sabia que envelhecer é acumular dores: começam por doer certos gestos, certos jeitos, virar-se de repente, agachar-se para atar o sapato; depois doem as acções mais comuns, sentar-se, levantar-se, caminhar; até que, por fim, dói tudo, dói estar, dói ser.” Mas, de repente, naquele acordar, não havia dores, só lembranças: “os óculos do Marcello Caetano são sofisticados. A grossura das lentes não lhe reduz o feitio dos olhos”. Prosseguiu até às farinheiras de sua mãe: “o cheiro avinagrado da massa das farinheiras que repousava em dois alguidares” e depois “a mãe e duas mulheres, com unhas cortadas à tesoura, a encher as tripas” e a voz da mãe a chamá-lo: “Onde existia a voz da mãe naquele instante?”

A mãe chamava-o dentro de si e transportava-o até à infância, até à salsicharia, da qual era dona, e para junto dos fumeiros, onde o instruía: “O lume tem de se conformar com chamas comedidas, sem extravagâncias de grande queima…” e ele mantinha-se alerta: “ É por isso que estou de sentinela, esta cana serve para animar o lume se começa a esmorecer, mas também para lhe dar uma cacetada se quiser levantar cabelo…” A mãe ficou viúva cedo com os filhos ao seu encargo e quando o rapaz ficou espigadote, a mãe achou por bem intervir, pedindo que escrevessem uma carta ao Presidente da República, para que lhe livrasse o filho da tropa, que precisava dele: “a carta roga ao presidente que me passe à reserva militar, ou que me permita cumprir o mínimo indispensável…diz que sou o amparo da família…”

A outra mulher que acompanha o protagonista ao longo da sua história é Alice, a sua esposa. “Nunca se cansava de repetir esse nome no seu íntimo…” Alice esteve e está sempre lá, junto dele: “a mulher a querer ajudá-lo, chega aqui, a mulher a compor a gravata, Alice, há minutos apenas, a mulher sentada, ele inclinado sobre ela…”

Uma das memórias que o acompanha é o do velório do próprio pai: “…tinha dezassete anos no interior dessa lembrança, a mãe, o irmão e as irmãs estavam vagamente atrás de si da maneira que, naquele momento, tinha a família do seu amigo mais sincero atrás de si…”, “Com dezasseis anos, não imaginava todo o tempo que teria de viver sem o pai, não imaginava que haveria um período imenso da vida em que seria obrigado a viver com a ideia de nunca mais ter um pai…”

A figura paternal passou a ser representada por um tio: o tio Joaquim. Foi ele que lhe abriu as portas para o mundo e negócio do café e tornou-se para ele um pai, padrinho, patrão.

O almoço de domingo foi efectivamente celebrado, não só em todos os domingos, mas naquele domingo da festa dos 90 anos do senhor Rui. No seguimento do almoço seguiram-se festejos e apresentações dos feitos do senhor comendador, como ele é conhecido na vila de Campo Maior, realizadas por crianças, pelas gerações mais novas: “Depois dessa coreografia, espécie de ginástica, escutou-se a voz de um menino a ler com boa entoação, contava a história do senhor Rui, também ele menino, em Campo Maior, nos anos trinta do século XX…O senhor Rui achou engraçado que fosse necessário explicitar o século…” De facto, “todas aquelas crianças desconheciam esse século!”

A história dele desenrola-se com muito pormenor como conversa em que cereja puxa cereja e vão-se desenhando tempos e espaços: tempos de fascismo, tempos de enterro desse fascismo, tempos de pobreza e é de realçar o facto de este senhor ser padrinho de tanta gente e patrão de tantos outros, a quem deu emprego, muitas vezes, para responder às suas necessidades básicas e prementes.

Como voluntária da Atlas, no projecto Velhos Amigos, orgulho-me de fazer chegar aos beneficiários o almoço de sábado. Infelizmente, não é uma refeição que os beneficiários partilhem com amigos e familiares, mas pelo menos, enquanto nos recebem, também eles têm um pouco a possibilidade de viajar através das suas pequenas memórias e de as partilharem connosco. É a nossa forma de lhes proporcionar “um almoço de Domingo” e de partilhar momentos com eles.

Almoço de Domingo
José Luís Peixoto

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